A proposta de OE2022 aponta para uma maior estatização da economia, uma enormíssima dependência da Europa para a realização de investimentos e uma perda de autonomia orçamental a prazo.
O Orçamento do Estado para 2022 (OE2022) apresentado esta segunda-feira constitui a aplicação do orçamento europeu em Portugal. Ou seja, não se trata verdadeiramente de um orçamento do Estado português, mas sim aquele que a União Europeia vai possibilitar em 2022 ao Estado português. São os recursos europeus que permitem suportar as prioridades estratégicas identificadas no documento (recuperação económica e social; aumento dos rendimentos das famílias; e apoiar as empresas no investimento, inovação, tesouraria e simplificação). São os recursos europeus que marcam a diferença nas medidas com impacto orçamental. E é também em contrapartida dos recursos europeus que, finalmente e ainda bem, emergem algumas (poucas) inovações no processo orçamental nacional. Bendita Europa.
A proposta de OE2022 mostra que na ausência de apoio financeiro da UE o orçamento do Estado em Portugal seria um mero orçamento de despesa corrente. Entre 2015 e 2019, como é sobejamente conhecido, o investimento público foi utilizado pelo Governo PS como instrumento de consolidação orçamental, tendo sido sistematicamente sub-executado. Desde 2020, os valores aumentaram, não sem a manutenção da habitual sub-execução face ao anunciado. A este respeito, também em 2021, o investimento público voltará a ser sub-executado, num ano em que a despesa pública total até será sobre-executada face ao proposto no Orçamento do Estado para o presente ano. Os casos da Justiça e da Saúde são paradigmáticos: face aos planos anunciados na proposta de OE2021, a execução dos investimentos públicos naquelas duas áreas de governação ficar-se-á em 2021 por 53,3% e 71,2%, respectivamente, do previsto.
O crescimento do investimento público é a principal mensagem política que o Governo pretende passar com a apresentação do OE2022. Prevê-se assim que o investimento público venha a aumentar de 2,7% do PIB em 2021 para 3,2% em 2022. O Programa de Recuperação e Resiliência (PRR) será essencial para atingir aquele fim. Conforme consta do mapa de medidas de política orçamental em 2022 (quadro 3.3), o PRR representará uma receita orçamental de 3.035 milhões de euros que permitirá custear quase na íntegra uma despesa orçamental de 3.203 milhões de euros respeitante a investimento público e outra despesa no âmbito do PRR. Trata-se do tal almoço grátis de que tem falado a presidente do Conselho de Finanças Públicas.
Mas há uma mensagem igualmente relevante sobre a despesa de capital (na qual se inclui o investimento público) que o Governo não realça: o crescimento das outras despesas de capital. Ora, as outras despesas de capital, que grosso-modo resultam de injecções de capital e operações afins nas empresas públicas e equiparáveis, representavam em 2015 menos de 15% da despesa de capital. Em 2022, está previsto que venham a representar 37,7% de toda a despesa de capital. Ou seja, estamos perante uma proporção cada vez maior de recursos de capital utilizados para tapar buracos financeiros das empresas do Estado. Em 2022, esperam-se assim novas injecções na CP, na IP e, pois claro, na TAP.
A estatização da economia portuguesa continua a crescer. É verdade que a despesa pública total em percentagem do PIB baixará em 2022 face a 2020 e a 2021, porém, aquele rácio permanecerá acima do valor pré-pandémico registado em 2019 numa altura em que se antecipa a recuperação da situação económica pré-pandémica de 2019. Neste domínio, há que prestar atenção à componente rígida da despesa pública, a chamada despesa corrente primária, que entre 2019 e o final de 2022 deverá ter crescido pelo menos dois pontos percentuais do PIB. De resto, só em 2022 as chamadas políticas invariantes – decisões tomadas em exercícios anteriores cujos reflexos se produzem em períodos subsequentes – deverão agravar o saldo orçamental em 2.003 milhões de euros (quadro 3.2)
As restantes medidas do Governo são orçamentalmente irrelevantes. O impacto orçamento das medidas aprovadas em sede de IRS representam uma redução de receita de 205 milhões de euros, ou seja, 0,1% do PIB. Lamentavelmente, o “pacote IRS” não se encontra devidamente detalhado para se perceber qual o contributo das diferentes medidas para aquele total. Mas o alargamento da dedução de IRS relativamente aos filhos dependentes de 600 para 900 euros, a partir do segundo filho e faseada até 2023, afigura-se especialmente irrelevante e incompatível com a fanfarra anunciada pelo Governo no domínio da “política de família”. Quanto ao novo “Garantia para a Infância”, que vale 70 milhões de euros (0,035% do PIB), será relevante para as famílias em questão, mas ao contrário do que o nome do programa sugere não vai mudar decisivamente a vida de ninguém.
A principal inovação do OE2022 consiste na introdução de um programa-piloto no que respeita à orçamentação por objectivos. Trata-se de uma inovação que vem com 7 anos de atraso, depois de ter sido plasmada na lei 151/2015, mas nunca implementada até hoje. Infelizmente, para além do atraso, o programa-piloto – estabelecido no âmbito do Ministério do Mar e que tem como propósito associar a despesa pública à obtenção de objectivos extra-orçamentais (v.g., exportações da economia do Mar em percentagem das exportações totais) – é pequeno (174 milhões) e a tabela (3.64) na qual se indicam as metas a atingir em 2022 não contém os valores que servem de ponto de partida. Esperemos que a tabela seja corrigida nas próximas semanas.
Em suma, a proposta de OE2022 aponta para uma maior estatização da economia no novo normal, uma enormíssima dependência da Europa para a realização de investimentos e modernização da máquina estatal, e bem assim para uma perda de autonomia orçamental a médio prazo.
Uma última nota para referir a situação da dívida pública. O sumário-executivo da proposta OE2022, que dança à volta do assunto sem nunca referir explicitamente o valor em percentagem do PIB, bem pode tentar a quadratura do círculo a fim de reduzir a importância do endividamento. Mas dada a fantasia associada às premissas subjacente à análise de sustentabilidade da dívida pública (vide p.369) qualquer pequeno abalo na economia será suficiente para criar um terramoto creditício. Convinha não abusar da sorte.